Prof. Álvaro Laborinho Lúcio: «A Educação não serve para. A educação existe por si.»
No dia 11 de novembro decorreu uma sessão, via plataforma zoom, do Curso de Mestrado em Filosofia para Crianças da Universidade dos Açores, com um convidado muito especial: o Prof. Doutor Álvaro Laborinho Lúcio.
A Diretora do Curso de Mestrado, Prof. Magda Costa Carvalho, iniciou a sessão enfatizando a honra e a alegria de receber tão insigne convidado, destacando a sua “formação académica e humana ímpar”, bem como as múltiplas experiências profissionais, não apenas como juiz, ministro, deputado, mas também como ator.
A sessão alicerçada no tema «A Criança e os seus Direitos» durou cerca de duas horas e meia e foi absolutamente notável porque repleta de sapiência e de «irreverência».
Munido do método socrático da «douta ignorância», Laborinho Lúcio desconstruiu filosófica e criticamente alguns pressupostos da Convenção sobre os Direitos da Criança (ONU, 1989), nomeadamente o conceito de Criança: «O que é uma Criança»?, eis uma interrogação onde confluem outras interrogações, «Qual é o superior interesse da Criança»?, «A Criança é um sujeito de Direitos?», convocando uma abordagem pluridisciplinar, isto é, ontológica, ética, gnosiológica, jurídica, política e educativa.
Mas esta atitude de “ignorância culta”, como a designou Laborinho Lúcio, é um caminho investigativo que suspende provisoriamente os conhecimentos que se julga saber sobre o ser da criança com o intuito de ultrapassar todas as crenças falsas, é também herdeira da dúvida cartesiana: «Temos que deixar de saber sobre ela para passar a conhecê-la»
A criança não é um adulto em miniatura, um homúnculo, é Criança. E isso implica restituir-lhe a sua dignidade, quer dizer, ser conhecida como um Outro – uma Pessoa –, ser reconhecida na «sua alteridade e personalidade» (mesmidade).
Enquanto Pessoa tem o direito de ser ouvida (art. 12º), mas isso pressupõe que tenha uma voz que e, portanto, possua o direito à liberdade de exprimir livremente a sua opinião, ou seja, à liberdade de expressão (art. 13º).
«Mas como se ouve uma criança?», «Como é possível dar voz a uma criança?», perguntou Laborinho Lúcio.
E a pergunta que surge interiormente é se o modelo de intervenção da criança no seio da comunidade de investigação filosófica (CIF), inaugurado por Mathew Lipamn (1923-2010) não tinha já subjacente esta profunda inquietude e como horizonte a possibilidade de uma prática dialógica emancipadora.
O tema «A criança e os seus Direitos» converteu-se em questão, ou melhor, numa pluralidade de questões: «Quais são os direitos da Criança»?
O orador encetou uma divisão tripartida dos direitos, “Direitos do Ser, Direitos do Pertencer e Direitos do Crescer».
Alerta-se, desde já, que não seria possível descrever a complexidade e riqueza que o nosso interlocutor ofertou a toda a sessão. Não é esse o intuito deste apontamento. Escreve-se ou inscreve-se algumas interrogações que poderão ser um convite a um repensar mais profundo sobre esta problemática.
O direito de ser é cúmplice do tempo de ser. Um tempo singular, quiçá, pouco ou nada cronológico, que respeita sobretudo a alegria de/do Ser.
Outorgar à criança o direito de ser criança, eis uma frase profundamente perturbadora. Não deixar a criança ser criança é paradoxal. Como é possível, sob que imperativos ético, político, jurídico ou educacional, se permitiu este esventrar à Criança da sua essência? Mas negar a essência não é impedir a sua existência? A essência precede a existência ou o inverso? E que tipos de adulto, de família, de escola e de sociedade, permitiriam a “violência física ou mental, maus-tratos ou exploração (art. 19º)” sobre a criança?
A “ignorância culta” exige outra pergunta filosófica, ou seja, indagar sobre os fundamentos do conceito de família: «O que é uma família?»
Segundo Laborinho Lúcio, ser progenitor não é condição suficiente para ser/constituir família. Tal como o sentimento de pertença não é inato, é construído cultural e afetivamente no seio de uma teia relacional, o direito de pertencer a uma família, funde-se com o direitos de respeitar, de proteger ou cuidar, de amar e de partilhar.
Questionando filosoficamente a educação, o ensino e a escola centradas no “Aluno”, uma abstração a que subjaz um pensamento unidimensional que reina na escola contemporânea – sufocada em competências, mas desconhecendo as capacidades de cada um, urge recolocar a “Criança enquanto sujeito de Direitos múltiplos, como o de Ser, o de Pertencer e o de Crescer.” Mas se os direitos são múltiplos, também as crianças são múltiplas. Porém, singulares e diferentes entre si. Como é que a escola e o ensino compatibilizam o singular com o universal? Como conciliar a observância da norma que exige «tratar todos como iguais» quando ontologicamente «todos são diferentes?», Como educar para autonomia quando a escola emerge como mecanismo instrumentalizador e normalizador – frequentemente silenciador -, do pensamento e da ação das crianças?
«A educação não serve para. A educação existe por si.», advogou Laborinho Lúcio. Neste contexto, o ideal de escola ou a escola ideal deverá estimular a diversidade «do pensar, do escolher e do agir», privilegiando a heterogeneidade.
Tal como «o maior inimigo do brincar é o brinquedo», o pior inimigo da pergunta é a resposta que se crê indubitável, e o pior inimigo da Criança é o adulto totalitário, incapaz de amar, de educar, de brincar e de (se) humanizar.
Mas se a sessão foi um convite à escuta ativa, foi também um desafio ao diálogo e à partilha transformadora entre todos os presentes. Que bela sessão prática de Filosofia. Filosofar talvez seja sinónimo de inaugurar as Utopias.
Elsa Cerqueira
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