Prof. Álvaro Laborinho Lúcio: «A Educação não serve para. A educação existe por si.»

Filed in Convidados, Pensamentos by on Novembro 23, 2020 0 Comments

No dia 11 de novembro decorreu uma sessão, via plataforma zoom, do Curso de Mestrado em Filosofia para Crianças da Universidade dos Açores, com um convidado muito especial: o Prof. Doutor Álvaro Laborinho Lúcio.
A Diretora do Curso de Mestrado, Prof. Magda Costa Carvalho, iniciou a sessão enfatizando a honra e a alegria de receber tão insigne convidado, destacando a sua “formação académica e humana ímpar”, bem como as múltiplas experiências profissionais, não apenas como juiz, ministro, deputado, mas também como ator.


A sessão alicerçada no tema «A Criança e os seus Direitos» durou cerca de duas horas e meia e foi absolutamente notável porque repleta de sapiência e de «irreverência».
Munido do método socrático da «douta ignorância», Laborinho Lúcio desconstruiu filosófica e criticamente alguns pressupostos da Convenção sobre os Direitos da Criança (ONU, 1989), nomeadamente o conceito de Criança: «O que é uma Criança»?, eis uma interrogação onde confluem outras interrogações, «Qual é o superior interesse da Criança»?, «A Criança é um sujeito de Direitos?», convocando uma abordagem pluridisciplinar, isto é, ontológica, ética, gnosiológica, jurídica, política e educativa.
Mas esta atitude de “ignorância culta”, como a designou Laborinho Lúcio, é um caminho investigativo que suspende provisoriamente os conhecimentos que se julga saber sobre o ser da criança com o intuito de ultrapassar todas as crenças falsas, é também herdeira da dúvida cartesiana: «Temos que deixar de saber sobre ela para passar a conhecê-la»
A criança não é um adulto em miniatura, um homúnculo, é Criança. E isso implica restituir-lhe a sua dignidade, quer dizer, ser conhecida como um Outro – uma Pessoa –, ser reconhecida na «sua alteridade e personalidade» (mesmidade).
Enquanto Pessoa tem o direito de ser ouvida (art. 12º), mas isso pressupõe que tenha uma voz que e, portanto, possua o direito à liberdade de exprimir livremente a sua opinião, ou seja, à liberdade de expressão (art. 13º).
«Mas como se ouve uma criança?», «Como é possível dar voz a uma criança?», perguntou Laborinho Lúcio.

E a pergunta que surge interiormente é se o modelo de intervenção da criança no seio da comunidade de investigação filosófica (CIF), inaugurado por Mathew Lipamn (1923-2010) não tinha já subjacente esta profunda inquietude e como horizonte a possibilidade de uma prática dialógica emancipadora.
O tema «A criança e os seus Direitos» converteu-se em questão, ou melhor, numa pluralidade de questões: «Quais são os direitos da Criança»?
O orador encetou uma divisão tripartida dos direitos, “Direitos do Ser, Direitos do Pertencer e Direitos do Crescer».
Alerta-se, desde já, que não seria possível descrever a complexidade e riqueza que o nosso interlocutor ofertou a toda a sessão. Não é esse o intuito deste apontamento. Escreve-se ou inscreve-se algumas interrogações que poderão ser um convite a um repensar mais profundo sobre esta problemática.
O direito de ser é cúmplice do tempo de ser. Um tempo singular, quiçá, pouco ou nada cronológico, que respeita sobretudo a alegria de/do Ser.
Outorgar à criança o direito de ser criança, eis uma frase profundamente perturbadora. Não deixar a criança ser criança é paradoxal. Como é possível, sob que imperativos ético, político, jurídico ou educacional, se permitiu este esventrar à Criança da sua essência? Mas negar a essência não é impedir a sua existência? A essência precede a existência ou o inverso? E que tipos de adulto, de família, de escola e de sociedade, permitiriam a “violência física ou mental, maus-tratos ou exploração (art. 19º)” sobre a criança?
A “ignorância culta” exige outra pergunta filosófica, ou seja, indagar sobre os fundamentos do conceito de família: «O que é uma família?»
Segundo Laborinho Lúcio, ser progenitor não é condição suficiente para ser/constituir família. Tal como o sentimento de pertença não é inato, é construído cultural e afetivamente no seio de uma teia relacional, o direito de pertencer a uma família, funde-se com o direitos de respeitar, de proteger ou cuidar, de amar e de partilhar.


Questionando filosoficamente a educação, o ensino e a escola centradas no “Aluno”, uma abstração a que subjaz um pensamento unidimensional que reina na escola contemporânea – sufocada em competências, mas desconhecendo as capacidades de cada um, urge recolocar a “Criança enquanto sujeito de Direitos múltiplos, como o de Ser, o de Pertencer e o de Crescer.” Mas se os direitos são múltiplos, também as crianças são múltiplas. Porém, singulares e diferentes entre si. Como é que a escola e o ensino compatibilizam o singular com o universal? Como conciliar a observância da norma que exige «tratar todos como iguais» quando ontologicamente «todos são diferentes?», Como educar para autonomia quando a escola emerge como mecanismo instrumentalizador e normalizador – frequentemente silenciador -, do pensamento e da ação das crianças?
«A educação não serve para. A educação existe por si.», advogou Laborinho Lúcio. Neste contexto, o ideal de escola ou a escola ideal deverá estimular a diversidade «do pensar, do escolher e do agir», privilegiando a heterogeneidade.
Tal como «o maior inimigo do brincar é o brinquedo», o pior inimigo da pergunta é a resposta que se crê indubitável, e o pior inimigo da Criança é o adulto totalitário, incapaz de amar, de educar, de brincar e de (se) humanizar.
Mas se a sessão foi um convite à escuta ativa, foi também um desafio ao diálogo e à partilha transformadora entre todos os presentes. Que bela sessão prática de Filosofia. Filosofar talvez seja sinónimo de inaugurar as Utopias.

Elsa Cerqueira

 

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